A Locomotiva do Espírito Santo que o tempo tentou parar

Desportiva Ferroviária Futebol Feminino
A Desportiva Ferroviária quebrou tabus para ser criada e seguir viva no futebol feminino (Foto: Divulgação)

Há histórias que o tempo tenta enterrar, mas que, quando reencontradas, se tornam sementes de futuro. A trajetória da Desportiva Ferroviária Feminina é uma dessas histórias.

Enquanto o Brasil ainda discutia se o futebol era “coisa de homem”, mulheres capixabas já calçavam chuteiras e escreviam capítulos de resistência e glória dentro de campo, muito antes do reconhecimento, dos patrocínios ou das transmissões televisivas.

Durante a era Vargas, o Decreto 3.199/41 proibiu oficialmente as mulheres de praticar esportes considerados “incompatíveis com suas condições biológicas”, entre eles o futebol. Ainda assim, a Desportiva Ferroviária ousou existir, formando uma equipe feminina, mesmo no período de proibição, sob a idealização de Delton Bittencourt.

Essa ousadia transformou o clube em pioneiro nacional, símbolo de coragem em um cenário em que até dominar uma bola no peito era “tabu”.

“As mulheres deixavam claro que não dominavam no seio, mas acima dele”, recorda a reportagem.

Um detalhe simples, mas que expõe o absurdo de um tempo em que o preconceito se travestia de argumento biológico.

Quando a Desportiva ensinou o que o país ainda não aprendeu

Entre 1980 e 1983, o time feminino da Desportiva Ferroviária disputou 122 partidas e perdeu apenas uma. Um feito quase inacreditável, sobretudo considerando a escassez de recursos e a ausência total de apoio institucional.

Mesmo assim, a diretoria anunciou o fim da equipe feminina “por falta de verba”.

O contraste é duro: enquanto as mulheres entregavam resultados históricos, as instituições lhes negavam o mínimo para continuar.

A própria reportagem evidencia a realidade de uma época em que nem os clubes tradicionais: Desportiva, Vitória e Rio Branco, nem a Federação Espírito-Santense de Desporto (FED) investiam nas mulheres.

A justificativa? Que o futebol seria “perigoso para elas”.

O mito da fragilidade feminina se impunha como barreira invisível, uma retórica que, disfarçada, ainda ecoa nos bastidores do futebol atual, quando projetos femininos são tratados como “secundários” ou “temporários”.

Vozes que romperam o silêncio

Os depoimentos de Jussara, Ana Regina e Elza Costa, jogadoras da época, são o testemunho de uma verdade incontestável: o talento, a garra e a capacidade feminina nunca foram o problema; o obstáculo sempre foi o olhar limitado da sociedade.

“Se as mulheres se jogam, dão carrinho, cabeceiam… por que não podem ser profissionais?”, questionava Jussara, goleira grená.

“Treinamento é essencial. Mas nós não podemos treinar porque temos que trabalhar, estudar e tudo mais”, acrescentava Elza Costa.

Essas vozes ecoam até hoje, lembrando que as barreiras que impediram o futebol feminino de prosperar não eram físicas, eram culturais, institucionais e políticas.

Comparar o ontem com o hoje: o que mudou e o que ainda falta

Décadas depois, o futebol feminino conquistou visibilidade global, presença em Copas do Mundo, ligas profissionais e transmissão na TV aberta.

Mas o Espírito Santo ainda luta para consolidar o que a Desportiva iniciou.

A cada ciclo, o futebol feminino capixaba “recomeça”, e esse é o ponto que mais precisa ser criticado e reconstruído.

Não se trata de começar de novo, mas de dar continuidade ao que nos foi tirado.

Temos base, história, legado e resultados concretos para sustentar um projeto duradouro. O que falta é visão institucional e investimento contínuo.

Enquanto o passado mostrava mulheres invencíveis em campo, o presente ainda enfrenta a ausência de políticas públicas sólidas, falta de estrutura e patrocínios que enxerguem o futebol feminino não como “custo”, mas como mercado, cultura e impacto social.

A hora de reerguer a locomotiva grená

A Desportiva Ferroviária Feminina foi mais que um time, foi um grito de independência em chuteiras.

O Espírito Santo precisa resgatar essa identidade, transformando-a em modelo de continuidade, profissionalismo e empreendedorismo no futebol feminino.

Porque cada vitória do passado grita uma verdade que o presente não pode ignorar:

“O futebol feminino não precisa de permissão. Precisa de investimento.”

A locomotiva grená não descarrilhou. Ela apenas aguarda o apito do futuro, o momento em que sociedade, clubes, federação e poder público compreenderão que valorizar o futebol feminino capixaba é valorizar o próprio Espírito Santo.

Foto de Edinalva Brito Gomes

Edinalva Brito Gomes

Advogada Desportiva, especialista em Direito no Futebol, Prática advocatícia em Direito Família e Cível. Pós-graduada em Direito Público - Direito e Processo Trabalhista. Membro da Comissão Direito Desportivo da OAB/ES e Membro do Tribunal de Justiça Desportiva Unificado - TJDU/ES. Presidente da CAAES Mulher, Coordenadora da Seleção de futebol Capixaba de advogadas 2022/2023, Vice-Presidente da Diretoria CAAES Esportes e Coordenadora das Modalidades de Esportes Femininos da CAAES. Presidente do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher (COMDDIM-VV). Presidente Fundadora do Projeto Sempre Vivas ES. Ao longo da trajetória profissional, tem se dedicado à prática advocatícia com um enfoque humanista, sempre buscando promover a justiça e os direitos humanos, com uma atuação marcada pelo compromisso com a ética, a responsabilidade social e a liderança.

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